Zukiswa Wanner renuncia à medalha Goethe
Eu me chamo Zukiswa Wanner. Sou escritora, editora, publisher e curadora. O continente africano é minha casa. Em 2020, eu me tornei a primeira mulher do meu continente a receber a Medalha Goethe, junto com a artista e diretora de museu boliviana Elvira Espejo Ayca, e o escritor britânico Ian McEwan. A Medalha Goethe é concedida pelo Instituto Goethe para “não-alemães que desempenharam extraordinário serviço para as relações culturais internacionais”, portanto, é notório que o prêmio represente uma condecoração da República Federativa da Alemanha.
Chamo a atenção — com estima — para a declaração publicada pela presidente do Instituto Goethe Carola Lentz’ no Der Spiegel em 14 de janeiro de 2024. Lentz’ declara: “Parceiros de longa data no mundo internacional da cultura estão perdendo confiança na generosidade da democracia da Alemanha”, e questiona: “A Auswartige Kultur und Bildungspolitik (AKPB) deveria apenas apoiar pessoas ou grupos que se ajustam à agenda política e moral do governo Alemão em questão?” Ela conclui, pelo contrário, com um alerta de que organizações como o Instituto Goethe não devem se tornar uma extensão do governo, especialmente em tempos políticos de dificuldade.
Na mesma linha, o Instituto Goethe de Johannesburg, sede regional para a África Sub-Saariana, fez emitir uma declaração em 7 de fevereiro de 2024: “Em relação à atual guerra em Gaza — nós estamos convencidos de que, em vista da situação catastrófica, um novo cessar fogo é urgentemente necessário. A escalada do número de vítimas civis é inaceitável”. Este esclarecimento é importante, uma vez que esta minha declaração de renúncia damedalha NÃO se deve ao posicionamento do Instituto Goethe, mesmo que nós nem sempre concordemos.
Em maio de 2023, enquanto eu participava do Festival de Literatura da Palestina, meses antes do 7 de Outubro, eu estive na Palestina Ocupada e viajei à Ramallah, Nabi Saleh, Jerusalém Oriental, Hebron e Lydd. Como escritora com origens em um país com sua própria história de apartheid, o que eu experenciei me chocou e resultou na escrita do livro Vignettes of a People in an Apartheid State — Relatos da vida palestina sob estado de apartheid, publicado no Brasil pela editora Periferias.
Não é preciso vir de uma país com histórico de apartheid para perceber as injustiças diárias contra os palestinos: desde estradas e vias separadas, número de placas para distinguir palestinos até mesmo de norte-americanos estranhos, ou colonos brancos sul-africanos com nostalgia do apartheid, armados sob a proteção das Forças de Defesa Israelense (IDF) para se fixarem nos assentamentos ilegais.
O fato é que o PalFest, diferentemente da maioria dos festivais de literatura, tem de levar escritores e escritoras às diferentes cidades, pois os palestinos não podem viajar sem a devida permissão de Israel — algo que carrega muita semelhança como as leis de passe da África do Sul do apartheid.
Isso tudo eu digo como forma de contextualizar as motivações que me levam a renunciar à medalha Goethe. Eu entendo a culpa da Alemanha pelo Holocausto. Mesmo. Mas gostaria que o governo alemão se responsabilizasse com a mesma culpa por sua história na Namíbia no genocídio Herero-Nama, e na Tanzânia pelo genocídio durante a Rebelião Maji Maji. Igualmente importante, gostaria que o governo alemão refletisse e dissesse que “nunca mais” também deve ser um NUNCA MAIS para QUALQUER PESSOA.
Pelo contrário, o que eu vejo é a Alemanha se colocando no lado errado, novamente do genocídio — assim como a Corte Internacional de Justiça decidiu prelimarmente a partir de ação movida pela África do Sul. Ainda, de acordo com Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) — a Alemanha e os EUA são os maiores exportadores de armas para Israel. Com mais de 30 mil pessoas assassinadas em Gaza, o que deveria gerar um mea culpa pela República Federativa da Alemanha — pelo contrário — parece ter feito dobrar o apoio do governo alemão em favor de um governo extremamente problemático.
No campo da cultura, desde o 7 de Outubro, 2023, tenho visto a Alemanha desaceitar artistas por conta de seus posicionamentos contrários ao estado colonial que é Israel, mesmo apesar da falha de Israel em sustentar os Acordos de Oslo (ainda que tenha sido um documento super medíocre para palestinos). Tenho lido que quase um terço dos eventos culturais cancelados pela Alemanha são de artistas judeus antissionistas. Falhou para mim a coerência de como judeus podem ser considerados antissemíticos (obviamente ignorando que palestinos são um povo semítico, apesar da intenção daqueles que apoiam o governo de Israel de deixar esse fato no esquecimento). Ainda mais recentemente, durante o Festival de Filme de Berlim, o cineasta palestino Basel Adra e o jornalista Yuval Abraham ganharam o prêmio de melhor documentário com No Other Lands. O filme mostra a erradicação de vilas palestinas na Cisjordânia. Dizem que o Ministro da Cultura da Alemanha declarou que seu aplauso se destinava apenas à metade israelense do dueto de cineastas. A história sul-africana tem uma frase para isso: Petty Apartheid. O apartheid mesquinho.
Eu me vejo, portanto, incapaz de permanecer em silêncio ou de manter uma condecoração oficial concedida por um governo insensível a tamanho sofrimento humano.
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